Blog:

O Avanço velado da Reforma do Código Civil e os Impactos na Sucessão de Cônjuges e Companheiros.

A necessária atualização do Código Civil de 2002 parte de uma premissa crítica: o diploma legal, concebido ainda na década de 1970, já nasceu em descompasso com a realidade social, trazendo à tona debates cruciais sobre a modernização das relações privadas. Dentre as propostas, a exclusão do cônjuge e do companheiro da condição de herdeiro necessário emerge como um dos pontos mais sensíveis. Atualmente, a lei garante a eles uma quota-parte da herança que não pode ser afastada pela vontade do testador. A alteração, defendida sob o argumento do fortalecimento da autonomia privada, reside em uma linha tênue entre o progresso e um significativo retrocesso jurídico e social, demonstrando uma clara dissonância com os princípios fundamentais que regem o ordenamento pátrio.

O principal argumento favorável à reforma baseia-se na premissa de que a independência financeira dos cônjuges tornaria a proteção sucessória uma tutela anacrônica. Tal visão, contudo, é falaciosa por partir de uma generalização que ignora a profunda desigualdade socioeconômica do país. Em inúmeras relações, um dos cônjuges, frequentemente a mulher, abdica de sua carreira em prol do cuidado com a família, ficando em situação de vulnerabilidade. Para essa pessoa, a herança não é um privilégio, mas a garantia do mínimo existencial. A proposta ignora, portanto, o princípio aristotélico da isonomia, que ensina a “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade”¹.

Ademais, a proposta de reforma fere de modo contundente um conjunto de garantias constitucionais. Viola o princípio implícito da vedação ao retrocesso social, que impede a supressão de direitos já efetivados, mas também atinge a dignidade da pessoa humana e a solidariedade familiar, pilares que sustentam a proteção ao cônjuge sobrevivente. A proteção sucessória,

consolidada após marcos como a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77)², é uma garantia histórica. A retirada do cônjuge ou companheiro como herdeiro necessário de forma abrupta, sem a criação de mecanismos compensatórios para recebimentos de herança ou uma proteção patrimonial com o falecimento do parceiro afetivo, representa um retrocesso flagrante.

Por fim, a alteração pode se tornar um catalisador para a violência patrimonial. Embora juristas como Rolf Madaleno defendam que, na revisão do código, “buscou-se bons mecanismos de redução de fraude”³, a medida gera um paradoxo. Ao remover uma camada de proteção sucessória, não estaria a lei, na prática, aumentando a vulnerabilidade da mulher e permitindo que o controle econômico se perpetue mesmo após a morte? É irônico que a própria justificação do projeto de lei mencione que a reforma é destinada “à própria sociedade brasileira”4, enquanto pode agravar uma das formas mais cruéis de violência doméstica.

A reforma do Código Civil é bem-vinda, mas não pode ser um cheque em branco para a desconstrução de garantias fundamentais. A exclusão do cônjuge da qualidade de herdeiro necessário, sob o pretexto de modernização, representa um grave risco ao projeto de uma sociedade mais justa e solidária. A verdadeira modernização reside em ampliar a autonomia sem desproteger, em refletir a diversidade familiar sem abandonar a solidariedade. Do contrário, estaremos diante de um avanço para poucos e de um doloroso retrocesso para a maioria.


1 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V, 3.

2 BRASIL. Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 dez. 1977.

3 MADALENO, Rolf. [Entrevista]. Revista IBDFAM: Violência Contra a Mulher, v. 80, abr./maio 2025.

4 Referência à Justificação apresentada no Relatório Final da Comissão de Juristas responsável pela Revisão e Atualização do Código Civil, entregue ao Senado Federal em abril de 2024.

Entre em contato com a advogada especialista

Agende uma consulta pelo seu WhatsApp e converse com nossa especialista. Estamos prontos para lhe atender e buscar o melhor caminho!

Para você Advogado:

Parcerias e Representação para Advogados

Assinatura de Newsletter:

Mantenha-se Informado!

Gostou do nosso conteúdo? Assine nossa newsletter e receba as últimas atualizações diretamente no seu e-mail! Mantenha-se sempre informado sobre mudanças importantes, decisões judiciais e novas estratégias jurídicas que podem beneficiar você e sua família.
Não perca a oportunidade de estar por dentro do que acontece no mundo jurídico!

Assine nossa newsletter!

Veja também: